8.30.2007

O Manto

Foi como ouvir uma daquelas de suas músicas que fala, disfarçadamente, do amor. Do amor que ele não acredita e se justifica cantando “você não nasceu pra mim”.

Quando estava ao seu lado, eu ficava sem graça porque não sabia conversar sobre os Los Hermanos. Sinceramente, pouco me importava se ele cantava Legião ou Los Hermanos. Misteriosamente encantador era o jeito que cada palavra escorregava para fora daqueles lábios carnudos recheados do desejo de me fazer ouvir. E então, estar ao seu lado sempre se tornara único. E mágico...

Agora me pego lembrando de fatos: a música que ele cantava... O olhar envolvente que ele deixava paralisar sobre a minha aura cheia de dúvidas... Aquele cheiro de homem sensível... Os três furos no rosto. Agora, todas essas imagens e sensações se tornaram distantes e embaçadas neste meu ângulo de visão. E então, mais uma vez, eu me pergunto: até quando? Ou até nunca mais? E a resposta não vem. E a ânsia aumenta. Sinto náuseas. Vontade de vomitar. Vontade de vomitar todo esse desespero em cima dele. Em cima da poesia que ele escreve e da música que ele canta. Agora, eu quero que ele se suje também. Me sinto abortada. Sinto que puxaram o meu tapete. Sinto também que eu não queria esse filho, apesar de amá-lo tanto... Entretanto, as minhas vísceras que, no momento do ato, estavam trêmulas, tentavam me encorajar. Elas pulsavam, tentando me fazer sentir que eu estava deixando que levassem o meu filho. Mas eu não as ouvi.

Como pessoa inacabada e covarde que sou, assisti o ato todo de perto, sem poder me defender. Ou, talvez, sem querer me defender...

O meu filho, aquele amor, que eu tanto admirava, foi embora. Foi levado de mim. E a inconveniente da culpa ficou no seu lugar, ao meu lado, segurando a minha mão de mãe abandonada.

Naquele momento, o seu olhar, antes envolvente, estava petrificado e sem vida. Ele tinha colocado em volta de si um manto escuro e pesado que ele dizia se assemelhar com um xale que costumo usar em dias nebulosos. Disse querer ficar parecido comigo.

Vestido naqueles trajes, que o impediam de enxergar o aborto que acontecia, ele começou a cuspir. Ele cuspia muito. Cuspia ao vento. Cuspia todos os incômodos. E as gotas de saliva que, por ventura, tocavam a minha pele, me causavam um ardor insuportável. Era a lua dele, cuspindo fogo. E nesse duelo, o meu escorpião se defendia, atacando. Por um instante, durante o caos da disputa, eu também quis cuspir. Enquanto o meu filho estava sendo brutalmente arrancado das mãos das minhas vísceras, fervia na minha garganta a vontade de cuspir, me defender. A minha vontade era a de cuspir em cima do meu xale, fazendo-o queimar por completo. Quis arrancar aquele manto de cima dele. Queria deixá-lo nu. Eu queria ficar nua. Queria salvar o nosso filho. Mas não consegui...

Quanto mais as salivas dele me queimavam a pele, mais fraca e amedrontada eu ficava. Sem ação e cada vez mais passiva. Engolindo o cuspe, eu tentava achar o olhar dele escondido no meio daquele manto escuro. Mas foi em vão... Então, o meu escorpião, já cansado de envenenar, e sem vontade de partir, virou-se de costas e colocou-se a andar, vagarosamente, deixando aquele lugar onde só restara os vestígios de um aborto acovardado. Porém, as vestimentas dele impediam que ele segurasse a cauda do escorpião... É, ele não queria segurar o escorpião. Ele não queria mais aquele escorpião por perto.


Texto escrito por Larissa Mauro